Dinheiro separa latino-americanos de asiáticos após a travessia de Darién
Migrantes de países próximos ficam em abrigo mais precário e têm dificuldade de seguir viagem; chineses e afegãos conseguem encurtar estada
Migrantes de países próximos ficam em abrigo mais precário e têm dificuldade de seguir viagem; chineses e afegãos conseguem encurtar estada
A tarde de sexta-feira do início de fevereiro começava no extremo leste do Panamá, no ápice da temporada de seca, quando a venezuelana Naibe, 28, se preparava para mais uma caminhada que lhe reservava ao menos cinco horas pela frente.
O objetivo era deixar a Estação de Recepção Migratória de Lajas Blancas, uma das que abrigam imigrantes recém-chegados da selva de Darién, à procura de alguma unidade da Western Union, para sacar dinheiro. Ela não tinha nem um centavo no bolso.
“Trabalhei por um ano em Medellín [Colômbia] juntando economias para essa travessia, mas alguns indígenas saíram da mata e nos roubaram. Chegaram a violentar [sexualmente] uma [imigrante]. Um haitiano que estava no grupo tentou intervir, mas passaram a faca em seu pescoço.”
Mãe solo, Naibe se viu com os quatro filhos, os gêmeos de 4 anos e duas meninas de 9 e 8, sem ter como pagar pela única opção dada aos migrantes para sair de Lajas Blancas: um ônibus que por US$ 40 (R$ 200) os leva direto para a Costa Rica.
Muitos migrantes de Lajas Blancas conseguiam dólares por meio de um esquema ilegal que cobrava uma taxa de 15% sobre o valor sacado, mas a polícia o desmontou. Assim, a busca por dinheiro passou a incluir a ida até Metetí, a quase 25 km de distância. Foi o que Naibe e outras centenas de pessoas, muitas acompanhadas de crianças pequenas, fizeram naquele dia.
Ela caminhava lentamente, extenuada pelo sol forte. Dois de seus filhos estavam com febre alta. Acenar para os carros que passavam pela rodovia Panamericana seria em vão: transportar imigrantes sem autorização no Panamá é crime.
Quando enfim chegou a Metetí, a venezuelana reuniu-se com outros viajantes que circulavam pelo comércio local. Logo perceberam que arranjar trabalho ou dinheiro ali seria quase impossível. Tampouco havia uma agência da Western Union naquela cidade.
A falta de recursos leva a maioria dos migrantes vindos da América Latina a ficarem até semanas em Lajas Blancas, que concentra os grupos da região. O abrigo tem capacidade média de abrigar 500 pessoas, mas desde 2023 não há nem um dia sequer em que não conte com mais de 1.200 –chegou a ter 3.000 nas épocas de pico–, ainda que algumas deixem o espaço antes do anoitecer rumo à Costa Rica.
As construções de madeira erguidas com verba da ONU há muito não dão conta de acomodar os abrigados, que se espalham em barracas no chão de terra. Há até placas de madeira para pedir que não façam suas necessidades ali. Agravado pelo calor, o mau cheiro impregna o ar.
Um obstáculo para o governo fazer melhorias é o fato de o terreno não pertencer ao Estado, mas sim a Olvenis González, 43, “o dono de Lajas”.
Em um dos dois únicos espaços de alvenaria na estação, uma ampla casa azul de venda de bebidas e marmitas, ele trabalha com a família. Sentado em um caixote de madeira ao lado de engradados de água e Coca-Cola, ele relata que em 2018 cedeu o terreno ao poder público “em troca de poder lucrar com o comércio”. Para os funcionários de entidades humanitárias, há “falta de vontade” em tornar o local mais organizado para o acolhimento.
O cenário é bem diferente a 32 km dali, na Estação de Recepção Migratória de San Vicente, a poucos minutos de Metetí, que recebe mais asiáticos e africanos. Com mais dólares à mão, chineses e afegãos, principalmente, têm condições de atravessar a selva pela rota mais curta. Muitos estão com roupas de proteção térmica, chapéus e calçados mais adequados para enfrentar a mata –os latinos às vezes saem da floresta descalços, sem nenhum pertence.
San Vicente é justamente o abrigo mais próximo para esses migrantes mais equipados. Lá, as estruturas são de metal, e há beliches para quase todos –a capacidade do local é de 400 imigrantes, mas, em média, menos de 300 pessoas ficam hospedadas.
No último dia 2, o que as autoridades locais descreveram como um tumulto entre os abrigados destruiu parte das instalações, que foram incendiadas. O episódio teria começado com a briga entre duas mulheres e acabou com mais de 40 imigrantes detidos.
Asiáticos que ali chegam geralmente partem para a Costa Rica no mesmo dia ou no dia seguinte à travessia da floresta de Darién.
Ainda na Colômbia, a jornada não faz diferenciações. Antes de cruzar o golfo de Urabá, todos precisam pagar pelo transporte das lanchas (em geral US$ 175, ou R$ 875), além de cerca de US$ 80 (R$ 400) como uma espécie de pedágio ao Clã do Golfo, o cartel que domina a região.
Para provar que o valor foi desembolsado, membros do grupo colam um adesivo nos documentos de identidade –quando a reportagem esteve na região, era a vez do escudo do Levante, clube de futebol de Valência, na Espanha.
Com a selva à frente, aí sim os dólares a mais contam. Quem optar pela rota mais curta tem de arcar com US$ 700 (R$ 3.500). A maioria segue pela trilha mais longa, por metade do preço. Coiotes acompanham os migrantes apenas até o fim do lado colombiano da floresta. Ao avistarem a bandeira do Panamá, sinalizando a fronteira, os viajantes são deixados à mercê de inúmeras gangues indígenas que atuam do lado panamenho.
Aqueles que conseguem atravessar Darién pela via mais demorada, em sua maioria latinos, desembarcarão na comunidade indígena de Bajo Chiquito e, dali, irão para a estação de Lajas Blancas. Pelo trajeto mais rápido, chega-se a Puerto Limón, e o destino será San Vicente.
No primeiro percurso, os migrantes costumam levar de 3 a 5 dias, em média, dependendo das condições físicas e se estão com crianças ou idosos. No “atalho”, o tempo varia de 2 a 3 dias.
Puerto Limón tornou-se o símbolo da migração asiática de Darién. Esse antigo terminal, que outrora servia apenas para conectar as comunidades indígenas às cidades e escoar a produção de banana e abacate, passou a receber milhares de chineses e afegãos e alguns poucos venezuelanos.
Ainda que seu desembarque nas piráguas (canoas) em muito se assemelhe ao dos latino-americanos que majoritariamente desembarcam em Lajas Blancas, as condições nas quais se encontram são visivelmente diferentes. Muitos estão com roupas de proteção térmica, sapatos e chapéus mais adequados para a região da mata, diferentemente dos abrigados em Lajas, que chegam por vezes sem sapatos e mesmo sem pertences após cruzarem a floresta.
O comércio local reflete isso: na rua de terra que dá acesso ao desembarque das piráguas (canoas) no rio Chucunaque, há pelo menos três lojas com placas em mandarim dizendo: “Amigo chinês, estou aqui e posso ajudar”. Eles vendem macarrão instantâneo e refrigerantes e oferecem espaço para que os migrantes carreguem os celulares.
Um comerciante que se apresenta como Alberto, natural de Cantão, está no Panamá há 42 anos. O país centro-americano foi o destino de sua família “em um momento impossível de sobreviver na China”. Diante da onda de compatriotas chegando por Darién, Alberto abriu seu mercadinho em Puerto Limón há seis meses. “A maioria que chega aqui vem de Fujian”, diz, referindo-se a uma província costeira da China.
No ano passado, 25,5 mil chineses atravessaram a selva panamenha, mais de dez vezes o registrado em 2022. Apesar desse fluxo sem precedentes, é muito difícil encontrá-los estagnados neste trecho de sua rota em direção aos EUA. Eles seguem viagem mais rápido.
Enquanto isso, dezenove dias após falar com a reportagem no Panamá, Naibe, a venezuelana que abre esta reportagem, aguardava com os filhos em um centro migratório na Guatemala.
Neste meio-tempo, conseguiu dinheiro emprestado com outros migrantes que conheceu no Panamá e saiu do país. Na Costa Rica, foi levada pelo governo até a Nicarágua, onde sacou o pouco que tinha e vendeu balas na rua para seguir até Honduras –onde fez o mesmo.
A jornada de Naibe estava longe do fim. “Não nos deixam vender nada aqui [na Guatemala]. Parece que incomodamos a todos. Não sei como vamos avançar.”