O barramento do Xingu vai diminuir a vazão da chamada Volta Grande, com suas corredeiras, canais e pedrais espraiados por cerca de 140 km. Venha com a Folha conhecer esse ambiente fluvial único e o que pode acontecer com ele, seus peixes e as populações que dependem deles
Um dos muitos pedrais da Volta GrandeImagem: Lalo de Almeida/Folhapress
Gelson Juruna, da Terra Indígena Paquiçamba, exibe dois acari-boi-de-botas, uma das espécies mais valiosas de peixes ornamentais que vivem na Volta Grande do XinguImagem: Lalo de Almeida/Folhapress
Capítulo 2 - Ambiente
A Volta Grande do Xingu
Giliarde Jacinto Pereira Juruna, 31, levanta-se da mesa ao meio-dia em ponto. O prato de acari-bodó –um peixe cascudo assado na brasa– pode esperar. É sábado e chegou a hora de ligar o gerador (durante a semana, a máquina só funciona quando a noite chega). “É para gelar alguma coisa, o pessoal fica mais em casa”, justifica. Futebol e cerveja: programa de fim de semana de índio, também.
Há quem trabalhe, contudo. Gelson Juruna pega o bote de alumínio, o tubo para respirar e as “vaquetas” (hastes de madeira para desentocar peixes das pedras) e sai pelo braço do rio Xingu que banha a aldeia Muratu da Terra Indígena Paquiçamba, no miolo da Volta Grande. Com sorte, voltará com até 40 bois-de-bota (Panaque nigrolineatus), um dos mais cobiçados peixes ornamentais. O boi-de-bota vive nas ramas, a vegetação das corredeiras, e pode ser vendido por R$ 12 cada um aos aquários de Altamira –ou R$ 480 de renda extra num sábado.
O boi-de-bota, conhecido no exterior como “royal pleco”, é um dos vários peixes loricariídeos –os populares cascudos– que ocorrem neste trecho do Xingu. Bem mais valioso é o acari-zebra (Hypancistrus zebra), o “zebra pleco”, que chega a valer R$ 40 a unidade para quem o capturar (o que ninguém admite fazer, porque a coleta da espécie vulnerável está proibida). E há muitos outros acaris para pegar e vender: amarelinho, bola-azul, onça, aba-laranja…
A variedade de padrões das manchas dos peixes de poucos centímetros faz a alegria dos aquaristas. São adaptações à também enorme diversidade de habitats oferecida pelos pedrais do Xingu, como são conhecidos os labirintos de rochas, areia e vegetação em que se espraiam as águas verdes do rio na Volta Grande.
A grande transparência é um convite à seleção sexual, daí a exuberância das listras e bolinhas, para atrair a atenção das fêmeas. A profundidade e a velocidade variáveis da água garantem nichos de temperatura diversa, assim como as rochas oferecem todo tipo de toca, e a vegetação, de alimento. Cada espécie, ali, é também uma especialista.
Os geólogos não sabem ao certo por que o rio faz aquela curva abrupta para o leste na altura de Altamira. A guinada se dá bem na linha divisória entre a bacia sedimentar do Amazonas, terreno mais recente e fácil de erodir, ao norte, e um embasamento de rochas mais resistentes, ao sul. Mas isso não explica o volteio do Xingu, pois outros afluentes do Amazonas, como o Tapajós a oeste, passam em linha quase reta pela mesma transição.
Uma das hipóteses em estudo desde 2010 por André Oliveira Sawakuchi, do Instituto de Geologia da USP, é que o leito de rochas duras como o migmatito tenha sofrido uma elevação recente (em termos geológicos, bem entendido: menos de 65 milhões de anos). Ou, mesmo, que o embasamento ainda esteja sendo levantado, ou ainda que uma elevação de migmatito estivesse soterrada pelas rochas sedimentares e a erosão do rio apenas tenha exumado a elevação.
É como se o rio se desviasse por encontrar pelo caminho uma ilha de rochas muito mais resistentes e precisasse achar um caminho para contorná-la, formando um conjunto de corredeiras de complexidade e tamanho únicos (elas são mais comuns em rios de vazão menor). “Chama a atenção do geólogo, ainda, o padrão geométrico dos canais do rio na parte encachoeirada”, explica Sawakuchi. Ele supõe que as águas estejam se espalhando pelas linhas criadas por fraturas geológicas no embasamento, orientadas no sentido noroeste, criando o emaranhado de canais e ilhas da Volta Grande, paraíso dos cascudinhos e seus pescadores.
Antes da Volta Grande e de Altamira, voadeira percorre canal entre a Terra Indígena Araweté e a Reserva Extrativista Rio XinguImagem: Lalo de Almeida/Folhapress
Após a Volta Grande, o Xingu volta a ser um rio de águas tranquilas com muitas praias, como o Tabuleiro do EmbaubalImagem: Lalo de Almeida/Folhapress
Essa paisagem vai mudar muito com o fechamento da barragem de Pimental, dentro de um ano. Ele vai achatar a amplitude notável dos pulsos de enchente e seca do Xingu, cuja vazão pode ultrapassar 20.000 m³/s entre dezembro e maio e despencar para 400 m³/s por volta de agosto/setembro, nos piores anos (ainda assim, cerca de dez vezes a vazão do Tietê em seu trecho paulistano).
Várias das espécies de peixes dependem das cheias para se alimentar e reproduzir, invadindo a floresta inundada (igapós) para comer frutas e desovar em ambientes protegidos. Quando as turbinas da casa de força principal em Belo Monte estiverem funcionando, a partir de 2016, o vertedouro de Pimental garantirá uma vazão mínima na Volta Grande de 700 m³/s na seca, mas as cheias se limitarão a 4.000 m³/s e 8.000 m³/s, em anos alternados, a chamada “vazão sanitária”.
Catarata de problemas
Os loricariídeos e seus pedrais, no entanto, estão longe de ser o único obstáculo no curso de Belo Monte. O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da hidrelétrica, aprovado em 2010 pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), tem 35 volumes. Demorou quatro anos para ficar pronto.
O nome sugere uma preocupação exclusiva com o ambiente natural, mas o estudo inclui também todos os impactos sociais da obra. Dos efeitos sobre o modo de vida dos índios ao saneamento básico em Altamira, do reassentamento de quem vivia em palafitas que serão inundadas ao impacto da explosão populacional nas cidades da área de influência, quase todas as mazelas passadas e presentes pedem solução naqueles milhares de páginas.
O processo de licenciamento pelo Ibama resultou num Projeto Básico Ambiental, o famigerado PBA, também ele de proporções amazônicas. São dezenas de programas, alguns com duração de mais de três décadas, que consumirão mais de R$ 4 bilhões dos R$ 30 bilhões que custará Belo Monte.
A lista de precondições –“condicionantes”, no jargão socioambiental– estabelecida pelo Ibama para dar a licença de operação da usina até o final de 2014 ocupa nove páginas. Tem 40 itens, da construção de escolas e postos de saúde à instalação de redes de água e esgoto em Altamira e Vitória do Xingu, do monitoramento da qualidade da água e das populações de peixes ao detalhamento de um sistema de transposição de barcos no barramento de Pimental. Nunca na história da construção de barragens no Brasil um empreendedor teve de se ocupar com um programa de mitigação tão ambicioso e, como seria de esperar, problemático.
Índios, ribeirinhos e moradores de Altamira se queixam de não terem sido suficientemente consultados sobre o aproveitamento do Xingu. O governo federal responde dizendo que realizou 142 eventos, incluindo quatro audiências públicas (em Belém, Altamira, Vitória do Xingu e Brasil Novo), que reuniram 6.000 pessoas; 30 reuniões em aldeias (1.700 participantes); e 61 em comunidades (2.100 presentes). A ausência de consulta adequada a todos os povos indígenas é uma das razões alegadas em duas dezenas de ações que o Ministério Público Federal move contra Belo Monte.
Audiência pública sobre Belo Monte realizada em Altamira no ano de 2009 - Lalo de Almeida/Folhapress
Audiência pública sobre Belo Monte realizada em Altamira no ano de 2009 - Lalo de Almeida/Folhapress
Audiência pública sobre Belo Monte realizada em Altamira no ano de 2009 - Lalo de Almeida/Folhapress
Audiência pública sobre Belo Monte realizada em Altamira no ano de 2009 - Lalo de Almeida/Folhapress
Audiência pública sobre Belo Monte realizada em Vitória do Xingu no ano de 2009 - Lalo de Almeida/Folhapress
Audiência pública sobre Belo Monte realizada em Vitória do Xingu no ano de 2009 - Lalo de Almeida/Folhapress
Audiência pública sobre Belo Monte realizada em Vitória do Xingu no ano de 2009 - Lalo de Almeida/Folhapress
Audiência pública sobre Belo Monte realizada em Vitória do Xingu no ano de 2009 - Lalo de Almeida/Folhapress
Em relatório de vistoria em julho, a equipe afirmou que o “descompasso” poderá atrasar a licença de operação da usina, que a Norte Energia deve pedir no próximo mês de julho. Se ela não for concedida até dezembro de 2014, a empresa não poderá fechar a barragem de Pimental e começar a gerar energia em meados de 2015.
Ninguém espera que a diretoria do Ibama dê esse passo. A União está de ambos os lados do balcão. O consórcio Norte Energia é quase todo estatal e terá prejuízo se a obra atrasar. O BNDES, que ao financiar R$ 22,5 bilhões do empreendimento se tornou um sócio, contratou uma auditoria socioambiental para monitorar o cumprimento das precondições, mas não divulga seus relatórios, sob a alegação de sigilo comercial.
No próprio Ibama já se ouve que alcançar 50% de saneamento básico (redes de água e esgoto) em Altamira em meados de 2014 pode ser considerado satisfatório. Isso apesar de o corpo d’água que banha a cidade e recebe os dejetos de uma população 40% maior deixar de ser um rio corrente para se tornar um reservatório, com o fechamento da barragem de Pimental.
Madeira desperdiçada
Quem circula pelos três canteiros de obra da hidrelétrica –Pimental, Canais/Diques e Belo Monte– topa aqui e ali com gigantescas pilhas de madeira. Elas são de dois tipos: bota-foras de resíduos fino e grosso (galhos e troncos sem valor para serrarias) e pátios de toras, várias delas enegrecidas por um ou dois anos a céu aberto. A Norte Energia alega que a maior parte do material é de madeira “branca” (sem densidade para uso na construção civil) ou de espécies cujo processamento exige autorização do Ibama, como castanheiras.
Belo Monte não vai devastar uma área de floresta inteiramente virgem, pois a região da Volta Grande foi desmatada em pelo menos 50% para a prática da agricultura e da pecuária depois da abertura da rodovia Transamazônica, nos anos 1970. Sobraram apenas fragmentos de mata primária, principalmente nas ilhas formadas pelos canais do Xingu.
Mesmo assim, o volume envolvido na “supressão vegetal”, segundo o eufemismo preferido pelo Ibama, é suficiente para influir no mercado regional de madeira. Só nos 130 km² do reservatório intermediário, uma conta grosseira aponta que serão derrubados 3 milhões de árvores.
Megaconstruções como a de Belo Monte consomem muita madeira na confecção de formas para concretar as estruturas das casas de força e dos vertedouros. O Ibama pressiona a Norte Energia e o Consórcio Construtor de Belo Monte (CCBM) para que a obra utilize de preferência a madeira do próprio desmatamento. Só em meados de 2013, contudo, teve início a montagem de duas serrarias nos canteiros, com capacidade para processar 80 m³ de toras por dia cada uma. Como resultado, até dezembro de 2012 a obra já havia demandado no mercado um total de 17,7 mil m³ de madeira, quando poderia estar vendendo.
Para Juan Doblas, especialista em geoprocessamento do Instituto Socioambiental (ISA) em Altamira, essa demanda extraordinária pode contribuir para estimular, em lugar de conter, o mercado ilegal na região. Embora a Norte Energia afirme ter comprovação da origem legal da madeira, Doblas acredita na posibilidade de que ao menos parte dela possa estar sendo extraída clandestinamente de unidades de conservação e terras indígenas –como Cachoeira Seca, área da etnia arara– e “esquentada” com autorizações de manejo florestal de áreas distantes dali.
Relatório da ONG Imazon divulgado em novembro de 2013 constatou que, de 2011 para 2012, a exploração madeireira não autorizada aumentou 151% no Pará. Um terço da área com extração clandestina se concentra em Trairão e Uruará –este último um dos municípios incluídos na área de influência de Belo Monte. O Pará foi o campeão de desmatamento na temporada 2012-2013, com 2.379 km² (41% do total amazônico) e um crescimento de 37% em relação ao ano anterior.
Madeira de desmatamento para a construção da usina de Belo MonteImagem: Lalo de Almeida/Folhapress
Filhote de macaco recolhido pelas equipes de resgate da hidrelétricaImagem: Lalo de Almeida/Folhapress
Peixes e chips
O responsável pela gestão ambiental da Norte Energia é o engenheiro Antônio Neto, 54. Sob seu comando estão nada menos que 55 ações do Projeto Básico Ambiental que abrangem o meio físico (águas superficiais e subterrâneas, erosão) e o meio biótico (seres vivos). Oito módulos de 5.000 m² foram demarcados para estudo de transformações nos habitats, que serão acompanhados por seis anos a fim de monitorar, a cada seis meses, as populações de aves, insetos e mamíferos (preguiças, macacos, antas, capivaras, ariranhas, lontras e iraras), assim como a flora (crescimento de árvores, sementes, flores).
O monitoramento de peixes será feito com biotelemetria, chips implantados nos peixes para registrar fluxo de migração em 800 km de rio, até o município de Senador José Porfírio, abaixo da casa de força principal no sítio Belo Monte. Oito postos fixos foram instalados no entorno da usina, para registrar quantos peixes passam e de quais das quatro espécies “chipadas”: surubim, pirarara, pacu-de-seringa e curimbatá.
Além disso, a Norte Energia montou laboratório no campus da UFPA em Altamira para estudar comportamento, alimentação e reprodução do peixe ornamental acari-zebra. O plano é desenvolver tecnologia para reproduzi-lo em cativeiro (o que já se faz na Alemanha), como forma de recompor a renda dos pescadores.
Neto diz não ter ideia do que vai acontecer com a queda da vazão média na enchente para os picos de 4.000 m³/s e 8.000 m³/s em anos alternados, nem com as espécies que dependem do pulso de cheia: “Se alguém diz que sabe o que vai acontecer, está mentindo”. Em outras palavras, Belo Monte é um grande experimento com a fauna e a flora da Volta Grande –para não falar das populações que têm o rio como fonte de sustento ou de lazer e das muitas dúvidas sobre a eficiência energética e econômica do empreendimento.
Experimento de risco
O risco de esse experimento no ambiente único de 100 km da curva do rio dar errado aumenta com uma deficiência científica básica, a falta de controle sobre as variáveis.
Na margem direita do Xingu, a cerca de 10 km da barragem de Pimental e outro tanto da Terra Indígena Paquiçamba, está para brotar mais um empreendimento de grande impacto –Belo Sun, maior mina de ouro do Brasil. A empresa de capital canadense planeja processar 94 milhões de toneladas de minério na Volta Grande, a partir de 2016, e extrair dele um total de 142 toneladas de ouro puro ao longo de 13 anos. Para comparação: estima-se que 100 toneladas tenham saído do garimpo de Serra Pelada, em uma década de funcionamento.
Apesar de a área de influência direta de Belo Sun se sobrepor à de Belo Monte, o estudo de impacto ambiental da hidrelétrica não leva em conta a mineradora. Além disso, os dois processos de licenciamento são fiscalizados por órgãos diferentes: o Ibama, no caso da hidrelétrica, e a Secretaria de Meio Ambiente do Pará, no caso da mina. O estudo de impacto da mineração não teria como considerar todos os impactos ambientais da usina, pois ninguém sabe ao certo quais serão eles. Mineradoras geram montanhas de rejeitos, em geral armazenados em lagoas sujeitas a rompimento em época de chuvas fortes.
A equipe que fez o estudo de Belo Sun não contava com antropólogos, apesar da proximidade das terras indígenas. O Ministério Público e organizações não governamentais já se prepararam para tentar barrar o licenciamento na Justiça, por falta de consulta a comunidades indígenas e por acreditar que, havendo impacto sobre elas, a competência caberia ao órgão federal (Ibama), não à secretaria estadual. Outra enxurrada de processos deverá erguer-se contra Belo Sun, que teve no entanto aprovada sua licença prévia no Conselho Estadual do Meio Ambiente do Pará, em caráter provisório, no começo de dezembro.
Para o Planalto, o governo do Pará e as prefeituras da região, o que conta é o fluxo bilionário de investimentos, a criação de milhares de empregos (ainda que temporários) e a sensação de progresso que galvaniza a região. Na propaganda eleitoral na TV, valem mais as imagens de um laboratório de reprodução de acaris-zebra, ou de uma Altamira livre dos urubus após a remediação do lixão, do que o futuro imponderável dos pedrais do Xingu.
Uma versão anterior deste capítulo foi modificada para refletir a seguinte correção: ao contrário do que afirmava o segundo capítulo da reportagem multimídia, o estudo de impacto ambiental da mina de ouro do projeto Belo Sun levou em consideração as mudanças na vazão da queda Volta Grande do rio Xingu que serão causadas pela usina de Belo Monte.