“Usuários de drogas violam a lei, mas são vítimas também. Unamos nossos esforços para iluminar seus corações e mentes com o quente brilho do sol, para encorajá-los a retomar suas vidas e retornar ao caminho da alegria”. A mensagem, com o típico floreio da propaganda estatal chinesa, foi postada em janeiro de 2013 numa rede social por Wang Xiaodong, comissário político antidrogas do Partido Comunista na província de Guizhou. O significado das palavras ia além do simples discurso motivacional, no entanto, e a referência ao “brilho do sol” não era fortuita.
Com população de 34 milhões de habitantes, modesta para padrões chineses, e economia baseada na exploração de produtos primários, a província no sudoeste do país foi a escolhida para sediar o Projeto Brilho do Sol, que simbolizou a mudança na estratégia do Partido Comunista para lidar com as drogas.
Pela primeira vez, o foco deixou de ser apenas em repressão ao tráfico e internação compulsória de dependentes.
Empresas locais passaram a receber descontos em impostos por aceitarem empregar usuários que estivessem passando por tratamento. Até agosto de 2020, segundo dados oficiais, o projeto havia beneficiado 53.120 dependentes químicos, com a participação de 127 empreendimentos.
Num gesto ousado em um país em que o tema sempre carregou grande estigma, doses de metadona, droga usada para reduzir a dependência de heroína e demais opioides, começaram a ser fornecidas durante pausas no trabalho.
“O Projeto Brilho do Sol obteve resultados admiráveis ao ajudar a usuários de drogas a encontrar empregos e voltar à sociedade”, diz a Comissão Nacional de Controle de Narcóticos, em entrevista por escrito à Folha. Desde então, o projeto foi replicado em 30 outras cidades e províncias.
Guizhou foi a escolhida para iniciar o experimento não apenas por ser uma província pequena e distante das grandes metrópoles chinesas. Também pesou o fato de estar próxima do chamado Triângulo Dourado, maior região produtora de opioides do planeta, que engloba parte dos territórios do Laos, Tailândia e Mianmar. Em 2019, vieram do Triângulo 82,7% das drogas sintéticas apreendidas na China, somando heroína, metanfetamina e quetamina.
Mas a nova orientação sobre tratamento de usuários não significa que o país tenha deixado de enxergar a questão das drogas pela ótica da segurança nacional, diz o professor Kalwan Kwan, que leciona criminologia na Universidade de Hong Kong e tem 30 anos de experiência lidando com dependentes de drogas no território e na China.
“A China não mudou sua visão de que as drogas são inimigas do Estado. O que ocorreu é que, para os dependentes, novos serviços foram introduzidos. A droga hoje não é mais escondida como se fosse uma pandemia inconveniente, mas vista como um tipo de patologia social que requer tratamento”, disse Kwan em entrevista à Folha.
O que possibilitou a mudança foi uma nova Lei Antidrogas, introduzida em 2008 pelo então presidente Hu Jintao.
Até então, o assunto era tratado sob um paradigma enraizado havia 170 anos. “O uso e a oferta de drogas têm sido um tema sensível e de alta prioridade para sucessivos governos da China desde pelo menos as Guerras do Ópio, na metade do século 19”, diz relatório de 2017 do Consórcio Internacional de Políticas sobre Drogas, que reúne ONGs e centros de estudos de diversos países sobre o tema.
As duas guerras (ocorridas entre 1839 e 1842 e entre 1856 e 1860) forçaram a China a abrir seu território para o fornecimento de ópio, droga mais popular do período, por imposição de potências europeias, sobretudo Inglaterra e França.
As derrotas nos conflitos são consideradas o marco inicial de um século de humilhação imposta pelo Ocidente. Mais importante, são culpadas por terem enraizado o hábito do consumo de drogas no país.
A Revolução de 1949 adicionou a esse sentimento a doutrina comunista da coesão social, em que o consumo de drogas pelo indivíduo passou a ser considerado um problema de ameaça à estabilidade coletiva. Num regime notório pela imposição de humilhações e reeducação forçada, usuários de drogas tinham tratamento não muito diferente do dispensado a traficantes.
A lei de 2008 marcou o fim da estratégia puramente repressiva. Segundo especialistas, a mudança no mercado global das drogas levou a que o modelo fosse repensado.
Novas substâncias sintéticas, crescimento do comércio online e alterações nos hábitos de consumo por uma população jovem e com poder aquisitivo crescente, especialmente nas megalópoles chinesas, levaram à conclusão de que atacar o problema apenas pela repressão à oferta era contraproducente.
“Nos últimos anos, em Hong Kong e na China, o consumo de drogas se tornou cada vez mais uma prática clandestina, com consumo em recintos fechados, casas e festas, o que torna mais difícil o trabalho de agentes da lei. A compra ocorre por meio de redes sociais, com enormes transações feitas via bancos eletrônicos. O padrão do uso de drogas mudou”, afirma Kwan.
A nova legislação criou diferentes categorias de tratamento para os usuários de drogas e incluiu a possibilidade, antes inexistente, de internação voluntária.
Para isso, o dependente, espontaneamente, deve admitir o uso a um órgão de segurança e buscar uma instituição médica reconhecida pelo Estado. Nesse caso, será poupado de penalidades.Outra novidade foi o “tratamento comunitário”, em que há um certo grau de coerção envolvido. Dentro do princípio de que o problema é de interesse coletivo, a modalidade prevê a internação forçada por até três anos para quem for preso ou se recusar a se tratar espontaneamente.
Teoricamente, o tratamento numa instituição é supervisionado pela “comunidade”, seja uma vila ou um bairro, mas na prática o dependente fica sob o controle da polícia. É ela que fiscaliza os passos da reabilitação e decide quando liberar o usuário ou não.
Já casos mais graves, em que o tratamento comunitário é visto como insuficiente, são encaminhados para campos de internação compulsória.
Segundo entidades de direitos humanos, esses campos têm diversas características semelhantes aos que fazem a “reabilitação” de prisioneiros com trabalhos forçados.
O período de internação pode durar de 1 a 3 anos, e o dia a dia inclui exercícios físicos rigorosos, rotinas militares, aulas patrióticas e exercícios de “autocrítica” que lembram os impostos a intelectuais durante a Revolução Cultural, nas décadas de 1960 e 1970.
O último relatório “Situação das Drogas na China”, divulgado em junho deste ano pelo governo, aponta 300 mil pessoas em tratamento comunitário e 220 mil em campos de internação compulsória no ano de 2019.
O mesmo relatório estima em 2,14 milhões o número de usuários de drogas na China, o que corresponderia a apenas 0,15% de seu 1,39 bilhão de habitantes, um número provavelmente subestimado.
Em resposta à Folha, a Comissão Nacional de Controle de Narcóticos mostra preocupação em não confundir flexibilização na abordagem dispensada a usuários, ainda que restrita, com leniência na repressão ao tráfico.
“O governo chinês sempre manteve tolerância zero com relação a crimes relacionados a drogas, reprimindo-os e punindo-os duramente”, afirma.
Os números apresentados são grandiosos. Em 2019, foram 83 mil ocorrências relacionadas a entorpecentes registradas pela polícia, com 113 mil prisões e apreensão de 65,1 toneladas. Foram destruídas 290 instalações de produção de drogas no país, incluindo 173 laboratórios domésticos.
A reabilitação compulsória, afirma, ocorre apenas numa minoria de casos. “O tratamento compulsório é uma parte pequena da política chinesa para lidar com as drogas. É destinado aos seriamente viciados, que não conseguem largar as drogas por meio de tratamento comunitário e prejudicam a sociedade”, diz o órgão estatal.
Apesar das críticas de entidades, a China diz que sua abordagem com relação a viciados é “humanística”. “O governo chinês acredita que usuários de drogas são violadores da lei, mas também pacientes, que devem ser respeitados e tratados”, afirma a Comissão.
Para os traficantes, há longas sentenças de prisão e até pena de morte, dependendo da quantidade de drogas apreendida e da reincidência.
No Brasil, a lei 11.343, de 2006, prevê pena de 5 a 15 anos de prisão por tráfico de drogas. Já a posse para consumo pessoal não prevê cadeia, apenas advertência, prestação de serviço comunitário e medidas socioeducativas.
Contudo, a lei brasileira não define a quantidade de droga para consumo, o que deixa a cargo das autoridades policiais enquadrar o flagrante como posse ou tráfico, abrindo caminho para corrupção e decisões arbitrárias.
Os números oficiais indicam avanços na guerra às drogas, embora a opacidade das cifras chinesas sempre recomende certa cautela. Houve, de acordo com as estatísticas, queda de 10,6% no número de usuários com relação ao ano anterior, e de 13,9% na quantidade de dependentes detidos. “Em 2019, a situação do abuso de drogas continuou a melhorar”, diz o relatório anual do governo sobre drogas.
Mas o governo também admite as dificuldades que enfrenta num mercado em mutação. A China diz ter catalogado em 2019 nada menos do que 431 tipos de drogas.
Entre as novidades, cita papéis absorventes encharcados com LSD, além de pílulas de metilfenidato, estimulante presente em remédios vendidos sob receita, e de dimetiltriptamina, substância lisérgica presente em plantas.Também há menção a novas formas de quetamina (que tem efeitos anestésicos) e de canabinoides sintéticos.
“Parte das atividades ligadas às drogas se voltaram para redes sociais. Tirando proveito de grupos de bate-papo online, seus participantes se comunicam usando identidades virtuais e palavras em código”, diz o relatório.
Há produção significativa em instalações no vasto interior do país, mas a maioria das substâncias vem de fora da China. A porta de entrada é a província de Yunnan, que faz fronteira com os países do Triângulo Dourado.
Ao entrar em território chinês, a mercadoria segue quatro rotas: para o centro, norte, nordeste e leste do país, até abastecer os principais conglomerados urbanos, como Pequim e Xangai.
Outra fonte fornecedora de opioides à China é o chamado Crescente Dourado, região que reúne Afeganistão, Paquistão e Irã.
Além disso, há uma explosão proporcional de drogas mais populares no Ocidente, embora a escala ainda seja pequena na comparação com as substâncias sintéticas mais ao gosto dos chineses.
A apreensão de cocaína vinda da América do Sul multiplicou-se por 12 entre 2014 e 2018, chegando a 1,36 tonelada.
Muitos dos corredores de exportação passam pelo Brasil, e a China cobra das autoridades brasileiras que forneçam mais informações para enfrentar o problema.
“Ainda há espaço para avançarmos. A China espera que o Brasil forneça inteligência sobre o tráfico e aguarda ansiosamente pelo fortalecimento da cooperação por meio da implantação de canais diretos e eficientes [entre os países]”, afirma a comissão antidrogas chinesa.
Já a apreensão de maconha, com origem sobretudo na Europa e na América do Norte, dobrou no período, chegando a 6,1 toneladas.
Totalmente ausente de qualquer política governamental chinesa é o debate sobre descriminalização do uso das substâncias ilícitas.
“Não vejo perspectiva de algo assim acontecer. Não conheço nenhum grupo social que apoie essa medida, e penso que seria algo muito difícil de ser politicamente viável na China”, afirma Matt McEnany, pesquisador do Instituto de Política de Saúde Global, baseado em Tóquio.
Em 2013, ele foi da equipe do Shanghai Mental Health Center, um dos principais institutos chineses que trabalham com a recuperação de dependentes químicos.
Embora a descriminalização do consumo seja recomendada por diversos especialistas que estudam o tema, não é realista imaginar que isso acontecerá tão cedo.
O país, afinal, levou quase 200 anos apenas para admitir a possibilidade de tratamento voluntário de dependentes, sem que a internação seja compulsória.
Nem mesmo alguns passos nessa direção são cogitados no país, como o fim da obrigatoriedade de registro de usuários junto à polícia e da proibição a que dependentes de drogas obtenham documentos simples, como uma carteira de motorista.
Apesar da nova lei e das políticas que prometem tratamento mais humano, a sociedade chinesa ainda vê o uso de drogas como algo próximo a uma falha de caráter.
“O vício em drogas é considerado um fracasso pessoal, e os afetados são altamente estigmatizados. A dependência não recebe muita simpatia do público ou prioridade do governo”, afirma um relatório sobre o tema do Brookings Institution, centro de estudos americano.