Fim de tarde de verão, um mês antes de a pandemia do coronavírus começar na América Latina. Nas praças verdes do parque Rodó, diante da “rambla” (calçadão), ao lado do Rio da Prata, há grupos de jovens, gente de meia idade, casais de idosos. Tomam mate, conversam, namoram, enquanto crianças correm e rolam descalças no gramado.
Aqui e ali, sente-se o inconfundível cheiro –há grupos e casais fumando maconha. Não há policiais nem se percebe se há gente incomodada com o fato. Parece tão natural como sentar-se na mureta para ver o pôr do sol.
“Eu planto maconha em casa, não compro na farmácia, porque acho que a que o governo vende é muito fraca. Eu gosto da lei porque não preciso buscar um traficante. Gasto uma hora por dia para cuidar das minhas plantas e isso é uma atividade terapêutica, me relaxa e me dá prazer”, diz um usuário ouvido pela Folha, ali com a namorada.
À primeira vista, poderia ser um cartão-postal da Lei da Maconha, em vigor no Uruguai desde 2013. Um olhar detalhado sobre a implementação do texto, porém, mostra que há pontos positivos e outros em que ainda não se chegou a um consenso.
Enquanto alguns aspectos, como a produção de ingredientes para remédios baseados na planta, evoluem rapidamente, outros ainda precisam de melhoras, como o controle dos usuários e a equalização da demanda por parte de usuários e de estrangeiros.
Esses últimos, até antes da pandemia, desciam dos barcos no porto de Montevidéu ou chegavam pelos aeroportos perguntando pela droga e logo se transformavam em alvo fácil dos narcotraficantes nas ruelas perto do porto ou nas portas dos hotéis.
A legislação de 2013 avançou com relação a outra que está em vigor desde 1971, que permite que qualquer cidadão porte, em pequena quantidade e para consumo próprio, qualquer substância ilícita –o texto ainda vigora para outras drogas, da cocaína à heroína.
Em 2013, porém, na gestão da Frente Ampla (esquerda), na presidência de José “Pepe” Mujica, criou-se uma legislação bem mais abrangente.
O texto estabelece que o Estado se responsabilize por plantação, produção, armazenamento, distribuição e venda da maconha. Para ter acesso, é preciso se registrar no Ministério da Saúde e ser uruguaio ou ter documento de residência permanente.
Então, pode-se comprar o produto desse cultivo, por enquanto em apenas 17 farmácias no país. A quantidade é de 40 g por mês, sendo 10 g por semana. A produção e a distribuição não foram interrompidas durante a pandemia.
O Estado, no entanto, não consegue produzir o suficiente para os que desejam comprar nas farmácias. Há apenas duas empresas que conseguiram licença para produzir, uma uruguaia e outra canadense, e a quantidade não atende à demanda.
“Os pacotes se esgotam em questão de segundos quando chegam”, diz à Folha Sérgio Redin, 56, responsável pela farmácia Antártida. Para evitar as filas que se formavam no começo, os estabelecimentos passaram a fazer reservas online.
“É difícil comprar, para cada reserva precisamos ficar insistindo em mais de uma farmácia até conseguir”, conta Nahum Martínez, 19, que apareceu para buscar seus pacotes enquanto a reportagem estava na farmácia.
A maconha distribuída nos estabelecimentos é de dois tipos, Cannabis indica ou Cannabis sativa. “Eu uso a indica quando quero relaxar, e a sativa quando quero ser mais criativo, escrever ou desenhar”, diz Martínez, que trabalha em uma padaria.
Em uma das farmácias que a Folha visitou, a irritação do farmacêutico era visível. “Eu não sei por que isso ainda é um assunto. O telefone não para de tocar, todo mundo entra aqui para perguntar, está todo mundo cansado de saber como funciona, o que tem mais a dizer?”, afirma, praticamente enxotando a reportagem do local.
A lei da maconha ficou tão conhecida pelo mundo que, principalmente nas férias, o Uruguai se enche de turistas que entram nas lojas de bugigangas relacionadas ao fumo –que vendem seda, narguilés, dichavadores, terra para cultivo, mas não a maconha– perguntando como e onde conseguir a droga. Muitas inclusive colocam um cartaz na porta ou sobre o mostrador: “Aqui não se vende maconha”.
“Não faz sentido fechar isso para o turismo. Eu acho que um segundo passo para essa legislação é abrir mais a venda, exigir menos registro dos usuários, e deixar que o país lucre com sua produção, desenvolva seus produtos”, diz o ativista Eduardo Blasina, proprietário e diretor do Museu da Cânabis em Montevidéu.
Blasina, porém, crê que a lei tem dado resultado. “Está diminuindo o estigma da maconha na sociedade, está aumentando a aceitação das pessoas da planta, e creio que todo governo democrático e humanista vai acabar regulamentando sua produção e venda de alguma forma e em algum momento.”
Como as restrições são muitas, há quem entre no circuito pelas beiradas, tentando montar um negócio no limite da lei. É o caso dos chamados chefs canábicos, que realizam eventos ou cursos em residências particulares e preparam comida feita com maconha de procedência variada: lícita, doada, ilícita ou cultivada por eles mesmos.
Um dos que planejam se tornar um chef canábico profissional é Gustavo Colombek, 29, brasileiro que se mudou para o Uruguai quando a lei foi aprovada. “Comecei a aprender a cozinhar com maconha na Europa. Tirei meu documento uruguaio e realizo eventos, fazendo pratos com os quais a pessoa pode ter a experiência da maconha digerida. Mas é muito delicado, você precisa acertar o tom e a quantidade, para que a pessoa não tenha um problema de saúde, pois o efeito é muito mais forte.”
Para a Folha, Colombek preparou um prato que ele mesmo criou, o Chicken Sauce Smoke. Trata-se de um frango com batatas que leva azeite de maconha. Outro de seus pratos autorais é o porco maluco, em que prepara a carne assada com uma infusão de flores de maconha.
As primeiras práticas a serem regulamentadas foram o cultivo pessoal, restrito a seis plantas, e os clubes de cultivo, em que vários usuários se juntam, nomeiam um cultivador e este se responsabiliza por até 99 plantas. Mas o limite de quanto pode consumir cada membro é igual ao das farmácias, 40 g por mês.
Esta é, porém, a parte da lei de que os usuários mais gostam, porque assim evitam as farmácias e há convivência mais amistosa com outros usuários. Há mais de 150 clubes no Uruguai, fiscalizados pelo IRCCA (Instituto de Regulação e Controle da Cânabis).
Há regras que envolvem qualidade do solo, segurança da propriedade e restrição de convidados na área de cultivo. Em caso de irregularidade, pode-se perder a licença ou ter as plantas destruídas.
“A lei não é ideal para os usuários e nem creio que tenha sido feita pensando neles, mas sim para desenvolver a indústria farmacêutica, deixando umas migalhas para nós”, opina a ativista veterana Alicia Castilla, cuja prisão foi um dos estopins da luta pela liberação da maconha no país. Ela foi denunciada por um vizinho por ter mais de 20 plantas em casa.
“Agora pelo menos não vamos em cana se plantamos, e o governo deixou de se meter com um direito humano, que é deixar que eu decida o que acontece da minha pele para dentro, o que eu quero ingerir ou consumir.”
Castilla diz que preferiria uma lei mais aberta, sem limitações de quantidade, e que estrangeiros pudessem também comprar.
Mas o principal problema que ela vê é o do registro. “Hoje essas informações estão bem guardadas, segundo o governo, mas e se amanhã temos um governo que resolve que vai disponibilizar essas informações, vender essa lista, como fica isso?”
Da geração dos que resistiram à ditadura uruguaia (1973-1985), Castilla desconfia de listas. “Na ditadura faziam listas também, queriam saber nomes, para quê? Para depois nos prender e torturar”, afirma a ativista.
Na casa de Alicia há seis plantas vistosas, num belo jardim a poucos metros da praia. Ali, ela também guarda a memória e a biblioteca do marido, o intelectual Daniel Vidart (1920-2019), que a acompanhou em seu ativismo.
Não muito longe, também perto da praia, está o clube de cultivo de Guillermo Amandola. Na casa principal, ele vive com a mulher e os filhos. Nos fundos, em uma espécie de galpão, está o clube, coberto, cercado por arames e com luzes, para 99 plantas.
Guillermo diz que o que mais gosta é de fabricar os distintos sabores que oferece. Numa sala ao fundo, onde recebe os membros do clube, há uma balança, em que pesa o que cada um pode levar, e um armário, conhecido como adega. Ali estão, em potes, os tipos de maconha que cada membro pode escolher.
Amandola, porém, é crítico da lei. Diz crer que não houve liberação e sim uma restrição.
“É como se eu estivesse numa liberdade condicional. Criaram um monte de regras e com isso mataram o ativismo. A ideia do limite de plantas é um absurdo, por que 99? Ninguém nunca me explicou esse número.”
Sobre as reclamações dos usuários, o diretor-executivo do IRCCA, Martín Rodríguez, diz que a avaliação do funcionamento da regulamentação até agora é positiva.
“A ideia nunca foi a de uma liberação total, nem de vender para fora ou para estrangeiros. O objetivo era tirar o negócio dos narcotraficantes e fazer uma legislação para usuários uruguaios ou para residentes permanentes do Uruguai”, diz.
Rodríguez avalia que é positivo que mais de 50 mil pessoas estejam registradas, um sinal de confiança no sistema. A lista de usuários está com o Ministério da Saúde e desassociada da atividade de cada pessoa, diz ele; apenas com uma ordem judicial é possível vincular as informações.
Segundo o balanço do IRCCA, o narcotráfico obviamente não terminou, mas diminuiu. Antes, estimava-se que 58% da maconha consumida no Uruguai vinha do Paraguai, produzida em más condições –o restante seria de cultivo ilegal local.
Agora, a droga vendida por traficantes teria baixado para 11% do total, o que significa, segundo o órgão, que US$ 30 milhões (R$ 154 milhões) deixaram de ir para facções criminosas. Ainda segundo a entidade, de cada 3 consumidores de maconha no Uruguai, 1 a obtém de modo legal.
Entre as questões não resolvidas está a relação dos locais de venda com os bancos. A maioria dos bancos estrangeiros teme lidar com estabelecimentos que comercializem maconha. “Por enquanto, não tem solução, resolvemos com imaginação”, diz Martínez.
Nos últimos meses, aumentou o número de empresas que conseguiram licenças para fabricar ingredientes para a produção de maconha medicinal. Há mais de 70 na ativa, uruguaias e estrangeiras, e mais de 30 esperando para obter licenças.
Por ora, elas produzem insumos para fabricar produtos para distintas doenças: estomacais, epilepsia, mal de Parkinson, efeitos colaterais da quimioterapia. Ainda não há, porém, remédios fabricados inteiramente no Uruguai. Essas empresas exportam para países que têm os medicamentos regulamentados; muitos deles voltam para serem vendidos no Uruguai.
A maconha estatal recreativa é cultivada num único local, um edifício-estufa, por duas empresas, uma uruguaio-espanhola e outra canadense. O local está em obras para receber três novas empresas estrangeiras. Desse modo, espera-se resolver o desabastecimento das farmácias.
Onde há plantações gigantescas é nas áreas destinadas às empresas de distintas nacionalidades que obtiveram licença para a produção de maconha medicinal.
A Folha visitou a norte-americana Fotmer, uma das maiores e a primeira a conseguir licença no Uruguai, que tem mais de 20 estufas enfileiradas. Dentro delas, apenas o ruído da ventilação e os passos suaves dos trabalhadores que entram para monitorar as plantas, identificar doenças, eliminar as que não estão se desenvolvendo a contento e para registrar a evolução de cada uma. Cada pé leva sua identificação num código de barras.
A Fotmer nasceu no Colorado, mas seu CEO, Jordan Lewis, se diz muito entusiasmado com as possibilidades no Uruguai. Segundo ele, o objetivo da empresa é criar uma indústria de US$ 1 bilhão (mais de R$ 5 bilhões) nos próximos cinco a sete anos.
Há duas propriedades ocupadas pela empresa em zonas francas no país. Uma, perto do aeroporto de Carrasco, abriga as plantas-mãe, escolhidas entre as melhores disponíveis por cientistas uruguaios e americanos. O segundo terreno, perto de Colônia, é onde se desenvolve o ciclo completo e onde está o laboratório.
A Fotmer exporta cerca de 100 kg de flores de maconha e extratos por mês, e os principais destinos são laboratórios da Europa e dos EUA que produzem remédios.
Médicos afirmam que faltam estudos sobre a maconha medicinal. Segundo estudiosos ouvidos pela Folha, há apenas três casos em que a cânabis medicinal se mostra realmente eficiente: epilepsia (usando apenas o CBD da planta), dor neuropática ou crônica e alívio de sintomas digestivos da quimioterapia (CBD com teor baixo de THC).
O neurologista Gustavo González vê o sistema uruguaio como um bom experimento, mas afirma que deveria haver mais pesquisas antes de construir tanta estrutura para produzir medicamentos.
A Folha provou a maconha das farmácias e concordou com usuários ouvidos: é muito fraca. Já a fabricada em casa, por usuários experientes e com técnicas apropriadas, é muito melhor e produz efeitos mais prazerosos. Consumidores concordam, porém, que tanto a maconha estatal como a artesanal são melhores que a paraguaia.
Quando a lei entrou em vigor, pesquisas do governo mostravam que 66% dos uruguaios a rejeitavam; hoje, 61% são a favor.
Desde março de 2020, o Uruguai tem um novo governo, do centro-direitista Luis Lacalle Pou, mas nada mudou com relação à legislação. Desde a campanha, Lacalle Pou vinha dizendo que não faria tentativas de alterar leis de direitos civis aprovadas durante o governo da Frente Ampla –como as da maconha, do aborto e do casamento gay.
A lei da maconha no Uruguai
Fonte: IRCCA