As pressões da direita militar e o combate à esquerda armada levaram à construção de uma máquina de repressão política feroz e serviram de pretexto para o endurecimento progressivo do regime autoritário inaugurado pelos golpistas em 1964
Os militares chegaram ao poder sem saber direito o que fazer. Alcançado o objetivo principal, que era afastar João Goulart e seus amigos, a prioridade dos golpistas passou a ser promover uma limpeza nas instituições, para expurgar comunistas e outros adversários de quartéis e repartições públicas e do Congresso.
Quem começou a dar ordens foi o general Arthur da Costa e Silva. Chefe de um departamento inexpressivo e sem tropas, ele se autonomeou comandante-em-chefe do Exército no dia 1º de abril e assumiu a frente do Comando Supremo da Revolução, que também incluía um representante da Marinha e um da Aeronáutica. A junta baixou um ato institucional que deu aos militares poderes excepcionais para perseguir seus inimigos e convocou o Congresso Nacional a se reunir em dois dias para eleger um novo presidente que concluísse o mandato de Jango.
Poderes excepcionais
Atos institucionais deram aos governos militares poderes para perseguir opositores
AI-1 9 de abril de 1964
- Convocou o Congresso a se reunir em dois dias para escolher o presidente da República, em eleição indireta
- Deu ao novo presidente, durante 60 dias, poderes para cassar mandatos legislativos e suspender direitos políticos por dez anos
- Durante seis meses, funcionários públicos e militares puderam ser demitidos, aposentados, reformados ou transferidos para a reserva por decreto, após investigação sumária
Nas duas primeiras semanas depois do golpe, a junta liderada por Costa e Silva cassou o mandato de 40 membros do Congresso Nacional, suspendendo seus direitos políticos por dez anos, e transferiu 146 militares para a reserva. Outras 87 pessoas tiveram direitos políticos suspensos nesses dias, incluindo Jango e o principal dirigente do PCB, Luís Carlos Prestes. O velho comunista encabeçou a primeira lista de punições, à frente do presidente deposto.
O governador de Pernambuco, Miguel Arraes, principal aliado de Jango no Nordeste, foi deposto por tropas do Exército, que o levaram direto do palácio de governo para a prisão. Milhares de pessoas foram presas em todo o país, de acordo com as estimativas da época. No Recife, um veterano militante comunista, Gregório Bezerra, foi amarrado pelo pescoço, espancado por um coronel do Exército em praça pública e arrastado pelas ruas da cidade até a cadeia.
Castello Branco, o oficial moderado que se juntara aos conspiradores semanas antes do golpe, logo se impôs como favorito para liderar a formação de um novo governo. Dono de grande prestígio nas Forças Armadas e fora dos quartéis, ele era visto como uma opção confiável, que garantiria uma rápida devolução do poder aos civis. Políticos que haviam incentivado o golpe, como Carlos Lacerda e o governador mineiro, Magalhães Pinto, chegaram rapidamente à conclusão de que esse era o caminho mais prudente a seguir.
Castello foi eleito no Congresso no dia 11 de abril, com o apoio das principais lideranças políticas que haviam sobrevivido à primeira onda de cassações. O ex-presidente Juscelino Kubitschek, senador pelo PSD e favorito para as eleições presidenciais de 1965, votou a favor de Castello. O general se reunira com ele e outros caciques do PSD poucos dias antes, quando prometeu manter o calendário eleitoral e transmitir o cargo a quem vencesse as eleições. “Se eu tivesse vetado seu nome, Castello não teria sido eleito”, afirmou Juscelino dez anos mais tarde, numa entrevista ao historiador americano John W. Foster Dulles.
Para Castello, a legitimidade do novo regime dependia da manutenção de uma fachada democrática convincente, em que o Congresso e outras instituições continuassem funcionando. Mas muita gente continuava inquieta nos quartéis. Centenas de inquéritos foram abertos após o golpe, e os coronéis encarregados de conduzi-los achavam que o governo não se empenhava o suficiente para garantir que os inimigos do regime fossem punidos. Queriam que Castello fosse mais duro.
O comportamento do presidente era ambíguo. Em junho de 1964, Castello cedeu à linha dura cassando o mandato de Juscelino, que logo se tornou alvo de um dos inquéritos. Em abril de 1965, após ficar um ano preso na ilha de Fernando de Noronha, o ex-governador Miguel Arraes conseguiu um habeas corpus no Supremo Tribunal Federal para ser solto e embarcou para o exílio na Argélia. Os coronéis tentaram impedir sua libertação, mas Castello interveio para que a decisão fosse cumprida.
Poderes excepcionais
Atos institucionais deram aos governos militares poderes para perseguir opositores
AI-2 27 de outubro de 1965
- Instituiu as eleições indiretas para presidente, cancelando as eleições diretas previstas para 1966
- Extingiu os partidos políticos existentes, autorizando a criação de dois novos, Arena (Aliança Renovadora Nacional) e MDB (Movimento Democrático Brasileiro)
- Deu ao presidente o poder de fechar o Congresso, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais
- Restabeleceu temporariamente poderes para o presidente aplicar punições a funcionários, cassar mandatos parlamentares e suspender direitos políticos
O resultado das eleições estaduais de 1965, em que os candidatos do governo foram derrotados na Guanabara e em Minas Gerais, aumentou as pressões da linha dura e levou Castello a promover uma guinada. Com o Ato Institucional nº 2, o general extinguiu os 13 partidos políticos existentes, cancelou as eleições diretas para presidente e abriu nova temporada de perseguições, restabelecendo os poderes que o primeiro ato institucional lhe dera em caráter temporário.
Castello não só rompeu os compromissos que assumira depois do golpe como aproveitou o embalo para erguer alguns dos pilares que sustentaram a feição mais autoritária do regime nos anos seguintes, fazendo o Congresso aprovar em pouco tempo uma nova Constituição, a Lei de Imprensa e a Lei de Segurança Nacional.
“Vivamente aplaudido”
Veja como a eleição de Costa e Silva foi noticiada pelo governo na época
Fonte: Arquivo Nacional
O cancelamento das eleições presidenciais fez aliados de primeira hora se afastarem. Castello ainda despachava no Palácio do Planalto quando Lacerda começou a articular uma frente de oposição com seus dois antigos adversários, Juscelino e Jango. A iniciativa deu em nada, mas mostrou o tamanho do descontentamento que a guinada autoritária provocara.
A linha dura colheu outra vitória logo depois, quando chegou a hora de escolher o sucessor de Castello e Costa e Silva, que se tornara seu ministro da Guerra, conseguiu impor seu nome. Castello morreu num acidente aéreo três meses após a posse do novo presidente. Muitas pessoas hoje olham com simpatia o período em que ele governou, ao compará-lo com fases mais repressivas do regime militar. Mas no fim de seu mandato os resultados de seu governo eram considerados decepcionantes.
O militante comunista Gregório Bezerra foi espancado por um coronel e arrastado pelas ruas do Recife até a cadeia em 1964
Foto: Iconographia
Com Jango deposto, o general Costa e Silva assumiu a frente do Comando Supremo da Revolução e assinou o primeiro ato institucional
Foto: Agência O Globo
O ex-presidente Juscelino Kubitschek com familiares na sacada de seu apartamento no Rio, no dia em que seu mandato de senador foi cassado
Foto: Agência Jornal do Brasil/Folhapress
O show Opinião, com Zé Keti e Nara Leão, estreou oito meses após o golpe e fez sucesso entre os estudantes que se opunham aos militares
Foto: Folhapress
A morte do estudante Edson Luís, em confronto com a polícia durante a ocupação de um restaurante universitário, causou comoção em 1968
Foto: Folhapress
Protestos estudantis tornaram-se rotineiros em São Paulo e no Rio, e passaram a ser reprimidos com violência pela polícia em 1968
Foto: Evandro Teixeira
Artistas como Chico Buarque (de verde), Caetano Veloso (com cigarro na mão) e Gilberto Gil (último à direita) estiveram na linha de frente da Passeata dos Cem Mil, no centro do Rio em 1968
Foto: David Drew Zingg/Acervo do Instituto Moreira Salles
A prisão de centenas de estudantes num congresso clandestino em Ibiúna (SP) em 1968 conteve a agitação estudantil por vários anos
Foto: Folhapress
“Vamos apanhar na cara”
Nos dias que se seguiram ao golpe de 1964, milhões de pessoas foram às ruas para celebrar o triunfo do movimento militar. Uma multidão tomou o centro do Rio por quatro horas no dia 2 de abril, com as mulheres à frente distribuindo fitas verde-amarelas e cantando hinos religiosos. “Vermelho bom, só batom”, dizia uma faixa. Entre março e junho, houve manifestações desse tipo em 69 cidades do país, incluindo as principais capitais, de acordo com um levantamento feito pela historiadora Aline Alves Presot, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Em 1968, os brasileiros voltaram às ruas, desta vez para manifestar repúdio aos militares. Estudantes que ainda eram jovens demais em 1964 começaram a agitar as universidades. Operários entraram em greve em Osasco (SP) e Contagem (MG). Intelectuais criticavam publicamente o governo e canções de protesto faziam sucesso na televisão. Em junho, eles estavam na linha de frente da Passeata dos 100 Mil, que tomou as ruas do centro do Rio poucos dias depois da morte de três estudantes numa manifestação reprimida pela polícia.
No mesmo dia, militantes de um grupo guerrilheiro, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), lançaram uma camionete com 50 quilos de dinamite contra o portão do quartel-general do 2º Exército, em São Paulo. A explosão matou um soldado de 18 anos que estava de guarda, Mário Kozel Filho, e inflamou os militares. "Isso é um tumor”, reagiu o general Manoel Carvalho de Lisboa, comandante da área. “É a onda vermelha que pretende tomar o poder à força.”
Poderes excepcionais
Atos institucionais deram aos governos militares poderes para perseguir opositores
AI-5 13 de dezembro de 1968
- Deu novamente ao presidente o poder de fechar o Congresso, Assembleias e Câmaras. O Congresso foi fechado por tempo indeterminado no mesmo dia
- Renovou poderes conferidos antes ao presidente para aplicar punições, cassar mandatos e suspender direitos políticos, agora em caráter permanente
- Suspendeu a garantia do habeas corpus em casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e a economia popular
- Deu ao presidente o poder de confiscar bens de funcionários acusados de enriquecimento ilícito
Os acontecimentos de 1968 aumentaram a agitação nos quartéis e as pressões para que Costa e Silva tomasse medidas mais duras para conter os contestadores, mas o presidente hesitava. Faltava um pretexto, e ele apareceu em setembro, quando o deputado Márcio Moreira Alves fez um discurso no plenário da Câmara sugerindo que os brasileiros boicotassem os desfiles militares de 7 de setembro. Os generais pediram sua cabeça, mas os poderes conferidos pelo AI-2 ao presidente não estavam mais em vigor, e a Câmara recusou-se a cassar o mandato do deputado.
A resposta do governo foi a edição do AI-5, o mais drástico dos instrumentos jurídicos de exceção adotados pelo regime. Além de restabelecer os poderes que o governo desejava ter para cassar e suspender direitos políticos, desta vez sem prazo de validade, o novo ato institucional suspendeu a garantia do habeas corpus, impedindo que opositores presos pelo regime recorressem à Justiça para obter a liberdade. Costa e Silva fechou o Congresso Nacional no mesmo dia, por prazo indeterminado.
“Às favas”
Ouça um trecho do voto de Jarbas Passarinho
Fonte: Arquivo Nacional
A reunião em que o presidente discutiu o ato com seus ministros no Conselho de Segurança Nacional foi gravada. Um ou outro fez ressalvas, mas o único a expressar discordância foi o vice-presidente, Pedro Aleixo, que preferia que fosse decretado estado de sítio. O tom da conversa pode ser resumido por duas manifestações, a do ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, que mandou “às favas” os “escrúpulos de consciência”, e a do chefe do Estado Maior das Forças Armadas, general Orlando Geisel: “Se não tomarmos, neste momento, esta medida que está sendo aventada, amanhã vamos apanhar na cara, senhor presidente”.
O AI-5 permaneceu em vigor por uma década e foi um divisor de águas na vida política do país. Ele inaugurou a fase mais repressiva da ditadura militar, em que pelo menos 300 militantes de organizações de esquerda foram mortos pelos órgãos de segurança e mais de 1.700 pessoas foram punidas por decreto. Nos primeiros dois anos de vigência da medida, presos políticos processados nas auditorias da Justiça Militar denunciaram mais de 2.200 casos de tortura.
A escalada da repressão
A ditadura militar durou 21 anos, mas a perseguição aos adversários do regime se concentrou em dois momentos, nos primeiros meses após o golpe de 1964 e na primeira metade da década de 70
Com o revólver na mão
A esquerda começou a se preparar para enfrentar a ditadura de arma na mão antes mesmo do endurecimento do regime. Militantes da Ação Popular (AP) e de outros grupos menores foram a Cuba fazer treinamento militar pouco depois do golpe, de acordo com o historiador Jacob Gorender. O PCdoB despachou os primeiros militantes para a região onde mais tarde desencadeou a guerrilha do Araguaia em 1966, dois anos antes do AI-5. A primeira turma enviada para treinamento em Cuba pelo líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), Carlos Marighella, desembarcou na ilha em 1967.
A primeira bomba explodiu em 1966, no aeroporto de Guararapes, no Recife. Escondida dentro de uma maleta e acionada por um relógio, ela foi armada por militantes da AP e foi detonada momentos antes da hora prevista para a chegada de Costa e Silva, que era aguardado naquela manhã para vários compromissos na cidade. Um oficial da Marinha, o almirante Nelson Fernandes, e o jornalista Edson Régis morreram na explosão.
Ex-militantes que participaram da luta armada justificam até hoje a opção como a única saída que encontraram para se opor ao regime depois que os militares fecharam os canais tradicionais de participação política. Mas documentos deixados pelas organizações com as quais eles se envolveram mostram que, no calor da hora, a explicação para seus objetivos era outra. A guerrilha era uma etapa na luta para derrubar a ditadura militar e substituí-la por outra, de caráter socialista.
Os militantes desses grupos acreditavam que o principal erro da esquerda em 1964 fora não resistir ao golpe. Agora, achavam que sua tarefa era fazer a revolução liderando pelo exemplo, realizando ações armadas que despertassem nas massas trabalhadoras o entusiasmo necessário para segui-los. O fim dessas organizações foi trágico, e nenhuma chegou nem perto de alcançar esse objetivo.
Vários desses grupos, como a ALN, surgiram de dissidências do velho PCB, que caiu em descrédito após a derrota sofrida em 1964 e se manteve longe da luta armada. Alguns chegaram a realizar ações conjuntas, mas não havia unidade entre eles e a clandestinidade em que operavam contribuía para reforçar seu isolamento. O PCdoB foi o único grupo que conseguiu criar um foco guerrilheiro.
A primeira tentativa foi organizada com dinheiro de Cuba e o apoio de Leonel Brizola, que vivia exilado no Uruguai desde 1964. Um grupo de 14 guerrilheiros, liderados por militares que haviam sido expulsos do Exército logo após o golpe, montou um acampamento na Serra do Caparaó, na divisa entre Minas Gerais e o Espírito Santo, em 1966. Foram capturados em 1967, antes de entrar em ação.
A maioria desses grupos limitou-se a realizar ações de impacto reduzido, como assaltos a bancos e depósitos de armas, cujo objetivo era obter condições para sobreviver na clandestinidade. Mas algumas ações foram espetaculares, como o assalto a um cofre guardado na casa de uma amante do ex-governador paulista Adhemar de Barros, que em 1969 rendeu US$ 2,5 milhões para a VAR-Palmares. A presidente Dilma Rousseff atuava na organização nessa época, mas não participou do assalto.
Cartaz do regime exibe fotos de Carlos Lamarca (acima), Iara Iavelberg, Mariano Joaquim da Silva (abaixo, à esq.) e James Allen Luz
Houve momentos em que eles pareciam estar por toda parte, e não só nos cartazes da polícia. Durante a greve de Osasco em 1968, a ALN e a VPR planejaram ações para cortar a eletricidade das fábricas, que não chegaram a realizar. Quando estudantes da Universidade de São Paulo e do Mackenzie entraram em confronto na rua Maria Antônia no mesmo ano, as duas organizações forneceram armas para que os alunos da USP se defendessem.
A ação mais audaciosa foi realizada em setembro de 1969, quando guerrilheiros da ALN e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) sequestraram o embaixador dos EUA no Brasil, Charles Elbrick, e exigiram que o governo soltasse 15 presos políticos em troca de sua libertação. Eles conseguiram tudo o que queriam, mas o sequestro também deu aos militares o pretexto de que precisavam para reorganizar seu aparato repressivo e dar início à fase em que o combate à esquerda foi mais feroz.
O almirante Nelson Gomes Fernandes foi uma das vítimas do atentado a bomba organizado em 1966 pela Ação Popular no aeroporto de Guararapes, em Recife, que tinha o general Costa e Silva como alvo
Foto: Arquivo/DP/D.A Press
Um ataque da Vanguarda Popular Revolucionária ao quartel-general do 2º Exército em São Paulo matou o soldado Mário Kozel Filho em 1968
Foto: Agência O Globo
O capitão americano Charles Rodney Chandler foi morto por guerrilheiros da VPR, ao sair de casa em São Paulo, em 1968
Foto: Reprodução
Em 1969, o sequestro do embaixador Charles Elbrick obrigou a ditadura a libertar 15 presos políticos, entre eles o então líder estudantil José Dirceu (segundo em pé), preso anos depois por causa do mensalão
Foto: Divulgação/Agência Nacional
O líder da Ação Libertadora Nacional, Carlos Marighella, foi morto num cerco policial em São Paulo, dois meses depois do sequestro
Foto: Iconographia
Acusado de financiar o aparelho repressivo da ditadura, o industrial Henning Albert Boilensen foi morto por guerrilheiros em 1971
Foto: Acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo
Líder da VPR, o capitão Carlos Lamarca foi morto no sertão da Bahia ao lado de outro guerrilheiro, José Campos Barreto, em 1971
Foto: Divulgação/Agência Nacional
A maioria dos guerrilheiros enviados pelo PCdoB à região do Araguaia foi morta pelo Exército e seus corpos desapareceram
Foto: Reprodução/Arquivo José Antônio de Souza Perez
“Foi a mesma coisa que matar uma mosca com martelo-pilão”
O sequestro do embaixador americano humilhou o regime num momento de fragilidade. O presidente Costa e Silva acabara de sofrer um derrame cerebral e estava afastado de suas funções. Uma junta formada pelos três ministros militares assumira o controle do governo. Agentes da repressão batiam cabeça com frequência. Quando uma equipe do Centro de Informações do Exército (CIE) descobriu a casa em que Elbrick era mantido refém, já havia uma turma do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) vigiando os sequestradores no local.
Dos 14 guerrilheiros que participaram do planejamento e da execução da ação, seis foram presos nas semanas seguintes à libertação do embaixador, entre eles o futuro deputado federal Fernando Gabeira. Um dos comandantes do sequestro, Virgílio Gomes da Silva, foi espancado após ser preso por agentes da Operação Bandeirante (Oban) em São Paulo e desapareceu. Foi o primeiro guerrilheiro a sumir nas mãos dos militares depois da edição do AI-5. Dois meses depois, Carlos Marighella foi morto num cerco policial em São Paulo.
A engrenagem
Os principais componentes do aparato repressivo construído pelo regime militar
- SNI
- CIE
- Cenimar
- CISA
- OBAN
- CODI
- DOI
Serviço Nacional de Informações
Criado em 1964 para assessorar o presidente da República, bisbilhotava opositores do regime e tinha divisões em todos os ministérios, mas seu papel no combate à luta armada foi reduzido
CIE
Centro de Informações do Exército
Cada uma das Forças Armadas tinha um serviço de inteligência próprio. O Cenimar é o mais antigo. Criado em 1967, o CIE era subordinado ao ministro do Exército e foi o que teve papel mais ativo na repressão
CENIMAR
Centro de Informações da Marinha
Cada uma das Forças Armadas tinha um serviço de inteligência próprio. O Cenimar é o mais antigo. Criado em 1967, o CIE era subordinado ao ministro do Exército e foi o que teve papel mais ativo na repressão
CISA
Centro de Informações da Aeronáutica
Cada uma das Forças Armadas tinha um serviço de inteligência próprio. O Cenimar é o mais antigo. Criado em 1967, o CIE era subordinado ao ministro do Exército e foi o que teve papel mais ativo na repressão
Operação Bandeirante
Criada pelo Exército em São Paulo em 1969, foi uma primeira tentativa de coordenar ações das forças de segurança envolvidas no combate à luta armada e recebeu apoio financeiro de empresários
Centro de Operações de Defesa Interna
Subordinados aos comandos do Exército em cada uma das quatro regiões militares, os CODIs foram criados em 1970 para planejar e coordenar ações repressivas dos militares e das polícias estaduais
Destacamento de Operações de Informações
Os DOIs foram criados junto com os CODIs e eram subordinados a eles. A maioria dos agentes dos DOIs era do Exército, mas militares de outras forças e policiais como os do DOPS de São Paulo também participavam de suas operações
Criada poucos meses antes do sequestro de Elbrick, a Oban foi um núcleo organizado pelo Exército com apoio financeiro de empresários para reforçar o combate a grupos de esquerda, coordenando ações das forças militares, da polícia estadual e dos órgãos de inteligência das Forças Armadas. A experiência foi tão bem-sucedida que, no ano seguinte, o Exército decidiu ampliá-la, criando o Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) e os Destacamentos de Operações de Informações (DOIs), unidades militares especializadas no combate à subversão.
Com o general Emílio Garrastazu Médici na Presidência, a reestruturação do aparelho repressivo deu aos militares novos recursos. O DOI-Codi tinha em São Paulo e no Rio um instrumento de tortura que se tornou célebre como a “cadeira do dragão”, em que presos eram imobilizados para a aplicação de choques elétricos. No Rio, havia uma cela para submetê-los a baixas temperaturas e outra para atormentá-los com ruídos e música alta. Sítios clandestinos em São Paulo e no Rio passaram a ser usados para interrogatórios e execuções.
As principais organizações envolvidas na luta armada foram liquidadas em pouco tempo, com seus militantes presos, mortos ou desaparecidos. Quando o foco guerrilheiro implantado pelo PCdoB na região do Araguaia foi descoberto pelo Exército, em 1972, muitas já estavam desarticuladas. A guerrilha foi vencida dois anos depois, após duas violentas campanhas militares. Havia cerca de 70 guerrilheiros na selva no momento em que os combates se iniciaram. Quando tudo acabou, 63 militantes estavam mortos ou desaparecidos. Os sobreviventes, como o futuro deputado federal José Genoino, estavam presos ou eram caçados pela polícia em São Paulo.
O combate era desigual, como os próprios militares vieram a reconhecer. “Foi a mesma coisa que matar uma mosca com um martelo-pilão”, disse o general Adyr Fiúza de Castro, fundador do CIE e chefe do Codi do Rio nos anos 70, numa entrevista a pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas em 1993. “Evidentemente, o método mata a mosca, pulveriza a mosca, esmigalha a mosca, quando, às vezes, apenas com um abano é possível matar aquela mosca ou espantá-la”, acrescentou.
As ações da esquerda armada também fizeram vítimas, mas elas não tiveram nem de longe a dimensão que os assassinatos e a tortura praticada nos porões tiveram. De acordo com um levantamento publicado pelo coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, que chefiou o DOI de São Paulo nos anos 70, as vítimas da esquerda foram 119, numa conta que inclui policiais e militares mortos em combate, pessoas comuns atingidas em tiroteios e casos em que a responsabilidade da esquerda é duvidosa.
Nos 21 anos da ditadura militar, houve períodos mais e menos repressivos. Mas uma característica comum a todos foi a tolerância com aqueles que empunhavam o martelo-pilão. Em 1964, Castello Branco mandou o chefe de seu gabinete militar, Ernesto Geisel, investigar as primeiras denúncias de tortura. Ele rodou o país e constatou alguns casos, mas ninguém foi punido. Em 1974, quando se preparava para assumir a Presidência, Geisel disse a um de seus futuros ministros, numa conversa gravada na época e revelada três décadas depois pelo jornalista Elio Gaspari: “Esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser”.
Cinco tons de cinza
Os generais que ocuparam a Presidência no período militar eram muito diferentes entre si, como foram seus governos