Os militares ampliaram o controle do Estado sobre a economia e fizeram o país crescer em marcha acelerada para ganhar legitimidade, mas criaram desequilíbrios que só puderam ser corrigidos muito tempo depois, com a volta da democracia
Novos ricos
Evolução da renda per capita no Brasil e nos EUA, em US$ mil*
Nos 21 anos em que os militares permaneceram no poder, a economia brasileira cresceu num ritmo quase três vezes maior do que o alcançado nos primeiros 21 anos após a volta da democracia. No período em que essa expansão foi mais acelerada, entre 1967 e 1973, o Produto Interno Bruto (PIB) aumentou 10,2% ao ano, em média, dobrando de tamanho em apenas sete anos. O resultado destoava tanto dos padrões da época que os analistas passaram a chamá-lo de “milagre brasileiro”.
A distribuição dos resultados do crescimento foi bastante desigual, mas na média a renda dos brasileiros aumentou de maneira significativa nesse período. Em 1964, um brasileiro ganhava o equivalente a 17% da renda recebida por um típico cidadão americano. Em 1978, a renda média do brasileiro correspondia a 28% da americana.
O avanço nas cidades
Ao final da ditadura, mais de dois terços dos brasileiros viviam em áreas urbanas
O crescimento econômico ajudou a ditadura a ganhar legitimidade política durante a fase mais violenta do combate à esquerda armada e também mais tarde, quando chegou a hora de afrouxar o regime e era preciso convencer os oficiais radicais que pensavam o contrário. Mas a maneira como os militares conduziram a economia enfraqueceu as finanças do país e minou sua capacidade de sustentar por mais tempo o ritmo de expansão dos anos do milagre.
Quando a ditadura acabou, o Brasil era outro. A maior parte da população havia abandonado a zona rural para viver em cidades e milhões de pessoas tinham migrado para os Estados mais populosos, como São Paulo e Rio. Uma indústria moderna e vigorosa se tornara responsável por quase metade da riqueza produzida pelo país. Mas boa parte do progresso alcançado durante o milagre acabou revertida. Em 1990, a renda média do brasileiro havia recuado para 20% da média americana.
Para rearrumar a casa
A economia brasileira estava estagnada quando os militares começaram a governar. As finanças públicas estavam em frangalhos e a inflação anual se aproximava de 100%. A resposta do presidente Castello Branco foi a adoção de um ambicioso programa de reformas, com três objetivos principais: equilibrar as contas do governo, controlar a inflação e desenvolver o mercado de crédito.
O QUE FOI O PAEG
Reformas no início do governo Castello Branco reorganizaram a economia e abriram caminho para o crescimento dos anos do milagre
- CORREÇÃO MONETÁRIA
- REFORMA TRIBUTÁRIA
- REFORMA BANCÁRIA
- POLÍTICA SALARIAL
- POLÍTICA HABITACIONAL
A instituição da correção monetária, que passou a garantir reajustes automáticos de preços, permitiu que o governo começasse a se financiar emitindo títulos públicos e contribuiu para aumentar a arrecadação do governo e a poupança privada
O novo governo eliminou impostos em cascata e tributos arcaicos, permitindo melhor coordenação dos regimes tributários da União, dos Estados e dos municípios. A correção monetária dos débitos tributários aumentou a arrecadação
Criação do Banco Central, com a missão de controlar a oferta de moeda na economia. A função era exercida antes pelo Banco do Brasil, que até a década de 80 continuou financiando o Tesouro Nacional, o que dificultava o trabalho do BC
Os salários passaram a ser corrigidos anualmente com base numa fórmula que só repassava parte da inflação, na prática impondo perdas. O governo extinguiu a lei que dava estabilidade a trabalhadores com mais de dez anos de casa e criou o FGTS
Criação do Sistema Financeiro da Habitação e do Banco Nacional da Habitação (BNH). Com correção monetária assegurada aos contratos e novos instrumentos de crédito, o governo estimulou a procura pela casa própria e a construção civil
Batizado como Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), ele foi elaborado pelos economistas Roberto Campos, que assumiu o Ministério do Planejamento, e Otávio Gouveia de Bulhões, que ficou responsável pela Fazenda. Sua principal inovação foi a introdução da correção monetária, mecanismo que passou a reajustar contratos, títulos públicos e dívidas tributárias com base na inflação passada.
A novidade permitiu que o governo começasse a cobrir seus gastos vendendo papéis financeiros no mercado, coisa que era impossível anteriormente porque os investidores temiam que a inflação corroesse seus ganhos se emprestassem dinheiro ao Tesouro. A correção monetária também ajudou a aumentar a arrecadação de impostos, reajustando as obrigações tributárias das empresas.
Outra inovação foi a criação do Banco Central, instituição que recebeu a missão de controlar a oferta de moeda na economia, antes papel do Banco do Brasil. Campos e Bulhões deram aos diretores do BC mandatos fixos, para que tivessem a independência necessária para tomar medidas impopulares sem temer eventuais consequências políticas.
Para conter os salários, o PAEG introduziu uma fórmula que previa a reposição da inflação passada e a incorporação de parte da inflação projetada para o futuro. Invenção do economista Mário Henrique Simonsen, a fórmula impôs perdas aos trabalhadores, porque os cálculos do governo sempre subestimavam as projeções de inflação. Mas o arrocho aliviou os custos das empresas e ajudou a segurar os preços, contribuindo para a retomada do crescimento nos anos seguintes.
A adoção de uma medida tão impopular só foi possível por causa do controle rígido exercido pelos militares sobre os sindicatos. O CGT foi posto na ilegalidade e vários líderes trabalhistas do tempo de Jango foram presos logo após o golpe. Nos dois primeiros anos do governo Castello Branco, os militares intervieram em 810 sindicatos, substituindo seus dirigentes por lideranças que oferecessem menor risco de contestação.
Pressa para crescer
As medidas adotadas por Castello Branco ajudaram a reorganizar a economia, diminuíram o deficit nas contas do governo e garantiram uma redução expressiva da inflação, que caiu para 34% em 1965. As reformas também ajudaram a restaurar a confiança dos estrangeiros no país, atraindo empréstimos e investimentos. Mas faltava crescer, e os militares estavam com pressa.
O controle do governo sobre a condução da política econômica foi ampliado após a posse de Costa e Silva. A independência do Banco Central acabou assim que ele assumiu, para nunca mais voltar. “O guardião da moeda sou eu”, avisou o general a Roberto Campos antes da posse, conforme as memórias do economista. Extintos os mandatos dos diretores do BC, seu presidente, Dênio Nogueira, deixou o governo.
Para chefiar o Ministério da Fazenda, Costa e Silva recrutou um jovem economista de São Paulo, Antonio Delfim Netto. Ninguém mandou tanto na economia como ele. Além de manter os salários amarrados pela fórmula criada por Simonsen, o governo passou a controlar os preços dos principais produtos, que só podiam subir com autorização de um conselho formado por quatro ministérios. A taxa de câmbio usada nas transações com o exterior era determinada por Brasília, que também controlava as principais fontes de crédito, de curto e longo prazo.
O governo também interveio no setor financeiro. As autoridades fixavam limites para as taxas de juros cobradas nos empréstimos bancários e distribuíam incentivos para os bancos que reduzissem suas taxas. Agências como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) passaram a oferecer crédito barato para financiar os investimentos do setor privado.
Com a economia internacional em expansão, os resultados apareceram logo. O aumento da renda fez explodir o consumo, e com ele a popularidade do governo. Entre 1968 e 1973, o número de domicílios com televisão e um automóvel na garagem mais do que duplicou. Em 1970, uma de cada quatro famílias brasileiras tinha um aparelho para assistir em casa à vitória do Brasil na Copa do Mundo.
Deu tão certo que Delfim continuou à frente do Ministério da Fazenda quando o general Médici assumiu a Presidência, após o afastamento de Costa e Silva. Era um ministro poderoso, que vivia bajulado pelos empresários e dava aos militares argumentos para rebater os críticos do seu modelo econômico. Como a propaganda do governo não se cansava de dizer, nada parecia capaz de deter o avanço do país.
O que mais incomodava os críticos do modelo adotado pelos militares era a maneira desigual como a riqueza que ele produzia era distribuída na sociedade. Em 1972, o economista americano Albert Fishlow foi o primeiro a chamar a atenção para o problema, com um artigo que apontava o arrocho salarial promovido pelo governo como principal responsável pelo aumento da distância entre ricos e pobres.
O trabalho deu munição para quem se opunha à ditadura e provocou debates animados na academia. Mas a questão era outra para o governo. Segundo um estudo pioneiro do economista Carlos Langoni, o problema era que os níveis de escolaridade da força de trabalho eram muito baixos. Assim, era natural que trabalhadores com diploma ganhassem mais com as oportunidades criadas pelo milagre, e era questão de tempo que outros fossem beneficiados na mesma medida.
Longe das escolas
A ditadura combateu o analfabetismo, mas a democracia investiu mais em educação
A tese de Langoni logo foi abraçada pelo governo, mas pela metade. Embora os estudos dele recomendassem investimentos maciços em educação básica, os militares se preocuparam mais em combater o analfabetismo e dar atenção às universidades, onde estudantes e professores eram fontes permanentes de contestação ao regime. Foi preciso esperar a volta da democracia para que o problema fosse atacado e os níveis de escolaridade da população melhorassem de forma significativa.
Dobrando a aposta
Ninguém se importava muito com os críticos enquanto o país continuava crescendo, mas a paisagem começou a mudar em 1973, quando os países produtores de petróleo aumentaram seus preços abruptamente. O choque abalou a economia mundial, ao elevar o custo da energia, e pegou desprevenidos países como o Brasil, que importava cerca de 70% do petróleo que consumia. Havia duas alternativas para lidar com a situação, e o governo escolheu a que parecia politicamente mais conveniente.
A opção mais prudente teria sido pisar no freio e esperar as coisas melhorarem, restringindo a demanda interna e jogando água na fervura. A maioria dos países importadores de petróleo seguiu esse caminho. O Brasil fez a escolha mais arriscada e resolveu dobrar a aposta para manter a economia crescendo.
Com a posse do presidente Ernesto Geisel, o comando do espetáculo foi entregue ao ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso, um discreto economista que trabalhara à sombra de Delfim no governo Médici. Ele lançou um ambicioso plano de investimentos que previa a captação de recursos externos para financiar o desenvolvimento de novas indústrias no país. Caberia ao governo induzir empresas nacionais e grupos estrangeiros a entrar nesses projetos, além de participar diretamente dos investimentos em vários casos.
Com as economias mais avançadas perdendo o viço e os produtores de petróleo em busca de alternativas para investir seu dinheiro, havia capital sobrando no mundo e isso permitiu que o governo e as empresas brasileiras tomassem empréstimos em condições razoáveis para financiar os investimentos planejados pelos militares. O objetivo era não só manter a economia aquecida, mas modernizá-la e reduzir a dependência externa da indústria nacional, passando a fabricar no Brasil máquinas e insumos básicos que na época ela importava.
O peso do Estado
Empresas estatais criadas pelo regime militar
Esse programa levou a participação do Estado na economia do país a um novo patamar. Empresas estatais comandavam a cadeia petroquímica e controlavam as usinas siderúrgicas, a produção e a distribuição de energia elétrica, as telecomunicações, as estradas e as ferrovias. Projetos ambiciosos como a usina hidrelétrica de Itaipu e o programa nuclear brasileiro nasceram nessa época. Fiascos como a Ferrovia do Aço, que levou 15 anos para ficar pronta, também.
Geisel precisava que o plano fosse bem-sucedido para fortalecer sua autoridade num momento delicado. Ele decidira iniciar um projeto de distensão política, e a ideia passara a ser combatida nas fileiras das próprias Forças Armadas. Ao mesmo tempo, o país começava a demonstrar cansaço após tantos anos de autoritarismo, votando em massa nos candidatos da oposição nas eleições de 1974 para o Congresso.
Hora de pagar a conta
O plano permitiu que o país continuasse crescendo por mais alguns anos, mas a festa acabou em 1979, quando um novo choque nos preços do petróleo atingiu a economia mundial, e as fontes de capital que haviam financiado os investimentos no Brasil começaram a secar. A inflação voltara a subir, a dívida externa do país crescia de forma explosiva e suas reservas de dólares estavam diminuindo. Chegara a hora de pagar a conta.
Com a posse do general João Baptista Figueiredo, Simonsen assumiu o Ministério da Fazenda e propôs um pacote de medidas de austeridade para esfriar a economia. Mas nem todo mundo jogava no mesmo time. Delfim voltara ao governo para assumir o Ministério da Agricultura e garantira um reajuste de 70% para os preços da safra agrícola de 1980, minando os esforços para conter a inflação. Sem dar resultado imediato, o plano de austeridade foi abandonado poucos meses após seu lançamento. Simonsen deixou o governo e Delfim voltou a dar as cartas, agora como ministro do Planejamento.
Delfim repetiu as políticas que tinham dado certo nos anos do milagre, liberando crédito e desvalorizando o câmbio para dar um empurrão nas exportações, mas ele e o novo ministro da Fazenda, Ernane Galvêas, sabiam que era inútil insistir. “Era preciso aceitar uma recessão, porque não havia opção”, diz o economista Carlos Langoni, que assumiu a presidência do Banco Central nessa época. “Havia uma resistência muito grande, porque o regime militar temia conviver com uma recessão.”
Os motivos tornaram-se logo evidentes. Em 1981, os Estados Unidos subiram as taxas de juros do dólar, aumentando drasticamente o custo da dívida externa brasileira. O governo reagiu com uma nova guinada na política econômica, adotando medidas de contenção do crédito, dos gastos públicos e dos reajustes salariais. A inflação continuou subindo, e a economia entrou em recessão, sofrendo uma contração de 4,3% em 1981. No ano seguinte, a oposição venceu as eleições para governador nos principais Estados. Nada mais parecia funcionar, e o governo se viu obrigado a bater às portas do Fundo Monetário Internacional (FMI) em busca de socorro.
O país só voltou a crescer em 1984, após três anos de recessão. Os militares estavam prestes a deixar o poder, e os desequilíbrios econômicos criados pelos excessos dos anos anteriores pareciam insuperáveis. As contas do governo estavam novamente desarrumadas, e o país suava para renegociar suas dívidas com os credores internacionais. A inflação anual passava de 200%, alimentada por mecanismos que a política econômica só conseguiu domar uma década depois do fim da ditadura.